Lenio Luiz Streck

Conhecimento fast food, Homer Simpson e o Direito

Lenio Luiz Streck

Procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

Dia desses, andando por entre as arborizadas alamedas da Unisinos, conversávamos Leonel Rocha, Vicente Barreto e eu sobre a crescente ascensão da fragmentação do saber, convertido cada vez mais em pedaços de conhecimento. E Vicente recitava, magnificamente, T. S. Eliot: “Onde está a sabedoria que se perdeu no saber; onde está o saber que se perdeu na informação?”. Com efeito. Tem razão. E o Direito parece ser o lócus privilegiado desse “mundo que não muda”, dessa cultura prét-à-porter à “disposição” como “secos, molhados e miudezas em geral” (os mais jovens não se lembram dos antigos armazéns). É neste ponto que o Direito é invadido pela liquidez da pós-modernidade (com todos os problemas que esse conceito acarreta). E um dos instrumentos que liquidificam o Direito é a internet. É inegável que a internet alterou as nossas vidas. Poucos, muito poucos, conseguem viver sem ela. Mas ela nos fornece apenas porções de sentido. Migalhas. Não mais do que isto.

Vivemos em um tempo em que, cada vez mais, somos movidos por “conceitos sem coisas”. Frases (enunciados) sem contexto. E tentativas de esmagar o mundo e colocá-lo “dentro dos conceitos”… O Google é um bom exemplo desta novilíngua, desse “mundo-que-parece-querer-(sobre)viver-sem-contextos”. Se você colocar no Google “Cataratas do Iguaçu”, ele vai ter dar “n” informações do tipo: “opero cataratas em clínicas de olhos em Foz do Iguaçu”; se você quiser saber sobre “testemunhas”, vai aparecer, como resultado, testemunhas de Jeová, testemunhas da nova ressurreição etc… Provavelmente nada do que você queria. Claro que deve haver modos de aprimorar a pesquisa. Mas não é disso que se trata. Quero apenas dizer que nossa vida – e a cotidianidade do Direito – acabam sendo uma sucessão de conceitos sem coisas, onde os contextos importam cada vez menos. O Direito, especialmente, se torna acrônico e atópico.

Wittgenstein sabia disso. Por isso, rompeu com o que escrevera no Tratactus. Abandonou a isomorfia (articulação interna do mundo e a linguagem – relação entre nomes e objetos nomeados). Agora, será o contexto de uso que dará sentido ao enunciado. Nos anos 1980, muito aprendi com a filosofia da linguagem ordinária. E, com isso, nas brechas da institucionalidade, fazíamos teoria crítica. Se, de um lado, Fr. Müller nos mostrava que texto e norma eram (e são) coisas diferentes, nós, linguisticamente, usávamos o contexto de uso. Brincávamos com o exemplo de uma lei que proibia o uso de topless na praia… Na praia de Ipanema, o enunciado tinha um sentido; já na praia do Pinho, onde se praticava o nudismo, o sentido era absolutamente inverso. Com isso, jogávamos os sentidos para a faticidade. Nem quero falar aqui do que representou aquilo que podemos denominar de giro ontológico-linguístico, a partir de Heidegger (filosofia hermenêutica) e Gadamer (hermenêutica filosófica). Essa foi a minha fase posterior, pós-analítica. Mas isso fica para outra ocasião.

Sigo. Dia destes, fui testar o Google, para saber o quanto ele (não) “recepcionou” os giros linguísticos… (sarcasmo!). Procurei saber se a famosa “ponderação” – tão propalada e repetida ad nauseam nos quatro quantos do país – era princípio ou regra (já vi questão de concurso dizendo que era princípio). Coloquei entre aspas “princípio da ponderação” e “regra da ponderação”. Resultado: 37.700 incidências dando a ponderação como princípio e 1.390 como regra. Se o aluno (considerando, de barato, que os professores fiquem fora dessa querela) for preguiçoso e, em vez de ler a fonte (Alexy), for ao Google, vai pagar o maior mico. Ponderação não é princípio. Ponderação é um modo de resolver colisão de princípios. Como tudo em Alexy é aplicado por subsunção, o “produto” final da resolução dessa colisão é uma regra adstrita (regra de direito fundamental), que será aplicada para resolver o caso concreto (e os próximos similares).

Viram como é perigoso o Google? Viram como é perigoso trabalhar com conceitos “sem coisas”? Viram como apostar na maioria nem sempre é que dá resultado? Qualquer néscio pode alimentar o Google. Qualquer imbecil pode colocar coisas na Internet. Dia desses, li uma frase em um banheiro de Buenos Aires que traduz muito bem essa questão das maiorias: coman mierda; mil millones de moscas no pueden estar equivocadas. Captaram? Por isso, não gosto de maiorias. Gosto da Constituição. Gosto da Constituição porque ela é um remédio contra maiorias.[1] E eu sou anterior à Constituição. Fui recepcionado por ela. Sou absolutamente constitucional. Com efeito ex tunc! Sem modulação de efeitos! Não cabe ADIN contra mim.

Informação não é saber. Conceitos sem coisas servem para esconder as “coisas”. Elas “nadificam”. O Google “nadifica” o ser das coisas. “Nadificar”… Do nada, nada fica. A informação “nadifica” e o saber “nadifica” esse nada! Com isso, ele pode ex-surgir. Manifestar-se como fenômeno. Phaenomenon. Por isso, T.S. Eliot estava certo. Parcela considerável dos livros de Direito cada vez mais está preocupada em oferecer informações. Apenas informações. Restos de sentido. E contentam-se com isso. Mas não se atrevem a ofertar o saber. Não arriscam a reflexão. Constrói-se, assim, um mundo de mentira. E ficções. Os que escrevem fingem que ensinam e os que compram fingem que aprendem. Resultado: isso que está aí. Hoje já estão vendendo informação em coletâneas plastificadas, que somente são úteis para quem as quiser ler durante o banho. Ou seja, não bastassem os compêndios que pretendem, já no título, simplificar e facilitar a compreensão (sic) do Direito, agora há “socorros” jurídicos plastificados. Há para todos os (des)gostos. Permito-me descrever apenas parte do conteúdo de um deles (sobre Hermenêutica), no qual nos é dito que a filosofia reinante no liberalismo, apresentado como “vigorante no século XVII” (sic), era o “absolutismo de Schleiermacher”… (sic). Mais: o utente é alertado para o fato de que “o STF retira a eficácia da norma (controle difuso) e remete ao Senado para que este retire a validade da lei”… (sic). Uau! E, digo eu: trata-se, efetivamente, de uma importante “dica” acerca da diferença entre vigência, validade e eficácia, contanto que o “consumidor” não a siga, para que não responda de forma equivocada eventual questão em concurso público…! De todo modo, há uma esperança: na parte em que o resumo trata das antinomias no Código Civil de 2002, os autores assinalam que, se alguma norma civil confrontar com a Constituição, “por certo prevalecerá o texto constitucional”. Mas por que a alocução “por certo”? Deixemos assim. Poderia ser pior…!

Esse imaginário do conhecimento fast food avança dia a dia. Wall Mart. Já li coisas em alguns livros usados na graduação que parecem ter sido escritos pelo Homer Simpson . Há um processo de “periguetização” em marcha. Parece que há uma disputa para ver quem vende mais facilidades aos incautos alunos – na maioria, pretendentes a uma carreira do Estado. Seria interessante fazermos um ranking para saber quem escreve de forma mais simplificada e mais néscia. Quem diria coisas mais óbvias? Tenho alguns indicativos, como “coisa alheia no furto é aquela que não pertence à pessoa”; “agressão atual é aquela que está acontecendo”; “os crimes comuns são os descritos no Direito Penal comum; especiais, os descritos no Direito Penal especial”; “crimes instantâneos são os que se completam num só momento”; “chave falsa é um instrumento para abrir fechaduras”; “causa superveniente é aquela que ocorre após”; “a preguiça e o desleixo excluem o dolo do crime de prevaricação”, e assim por diante.

E, cada vez mais, o Direito vem imitando a linguagem da TV. Dias desses, vi um programa de esportes na TV. Tratava de um time de futebol do interior. O repórter, como qualquer do seu meio, parece não saber apresentar a notícia sem fazer “metáfora”, alguma “gracinha” ou usar linguagem em duplo sentido. Muito engraçado. Não aguento. Atiro-me ao chão. Farfalho. Eles são pândegos. Galhofeiros (estou sendo sarcástico, é claro). Então o repórter queria dizer que o time X disputaria o campeonato a galope. E o que ele mostrou? O técnico do time montado… em um cavalo. E um galope. Uau. Que metáfora… Mas, pergunto: se é metáfora, por que, para mostrá-la, é necessário ser isomórfico, isto é, “colar” palavras e coisas? Explicando melhor: uma metáfora serve para explicar coisas que as pessoas poderiam não entender… Pensem na Bíblia, rica em metáforas, metonímias… Agora, se para “metaforizar” é preciso “mostrar” a “própria” metáfora, ou seja, “demonstrá-la”, já não se está mais em face de uma metáfora. Imaginem o repórter contando a Bíblia: “então Jesus contou a parábola do filho pródigo…” E a imagem mostra um filho, andrajoso, voltando para os braços do pai… Imagem é tudo. Por isso, aos poucos, os professores parecem que já não sabem dar aulas sem o “pauerpoint”… É um sintoma disso. Tem que mostrar letrinha, figurinhas… E leem para os alunos o que está na pantalla. Na aula de Direito Constitucional, quando falam em poder constituinte, tem que mostrar a foto do parlamento. Claro. Os alunos pode(ria)m pensar que poder constituinte pode(ria) estar ligado a um estádio de futebol… Afinal, Romário não é deputado?

Incrivelmente, a TV criou um “método” pelo qual o telespectador é tomado por débil mental (qualquer semelhança com o ensino jurídico e os concursos públicos e suas infames “pegadinhas” não é mera coincidência). Por isso, como diz Galeano, pobres, verdadeiramente pobres, são os que não têm liberdade senão para escolher entre um e outro canal de TV. E eu acrescento: pobres dos juristas, especialmente os estudantes, que não têm liberdade senão a de escolher entre um manual e outro… Nesse imaginário, as pessoas não pensam. Tem-se que “pensar por elas”. Por isso, a “ideia” deve vir “pronta”. Para falar da enchente, o repórter tem que ficar com água pelo pescoço. O trigo está subindo de preço… Onde está o repórter? No meio de um trigal, é claro! (Trigo igual a trigal… isomorfia… colando o “relé”, como se diz na minha terra!). No Direito, o aluno não tem que saber a história do Estado Moderno, a descontinuidade entre a Forma Estatal Medieval e o Absolutismo… Não. Basta ele saber um drops, que cabe em uma mensagem de twitter. Por isso, ao invés de lerSchleiermacher, o aluno lê a publicação plastificada e aprende… nada (e erra até o século em que o Friedrich S. viveu). Por que ler a Teoria Pura do Direito se é possível ler o resumo dela em sete linhas que um determinado manual faz? Por que estudar a fundo o que seja um princípio se o mais fácil é repetir o mantra “princípios são valores”… E, depois, mais fácil ainda é sair repetindo “princípios” como o da felicidade, da afetividade, da eventual ausência do plenário, da rotatividade… Claro: em um país em que “judicializaram o amor”, o que mais é preciso fazer?

Imagem é tudo. Um conjunto de informações encobre a necessidade do saber… Pergunto: ainda há saída? O pior é que nem podemos dizer que alguns autores de plastificações, compêndios simplificadores e membros de bancas de concursos-que-gostam-de-fazer-pegadinhas deveriam voltar a estudar. Pode ser crime (lembremos o caso do júri Lindemberg em SP; minha dúvida é se caberia exceção da verdade…). PS: foi uma ironia!

Quando lemos alguns livros que querem trazer informações para os estudantes, vemos coisas incríveis, como que a repetir os positivismos do século XIX. Alguns “ensinam” o método de Savigny, sem qualquer contexto. E falam sobre Savigny como se fossem íntimos. Sobre a Escola Histórica falam como se esta fosse um conceito sem coisa… Chegam a reificar o conceito. Até mesmo na Suprema Corte ainda é possível ler frases que bem poderiam estar na boca dos exegetas franceses ou dos pandectistas alemães. Como se palavras e coisas fossem coisas “coladas”. E como se a lei “carregasse” o Direito (mas não esqueçamos do lado B disso tudo…: Angelo I e Angelo II, dos quais tratei em um texto anterior desta coluna, no É possível fazer direito sem interpretar? ).

Ora, o que nos coloca no mundo é a metáfora. Entre o significante e o significado se faz uma barra (que pode ser chamada de metáfora). Lembremos, aqui, de Saussure e Lacan – para dizer o mínimo, sem sofisticar a questão. Se eu digo que tenho uma bomba, você não precisa se atirar no chão. Bomba não é “bomba” (“em si”). Trago comigo apenas uma notícia bombástica, como, por exemplo, que um determinado livro de informação de baixa densidade gnosiológica já vendeu mais de 300.000 exemplares… Não é uma “bomba”? Dá para perceber? As palavras não “carregam” a essência das coisas. No Nilo não está a água do rio Nilo. (Fosse na TV, o repórter, ao dizer essa frase, estaria mostrando… o rio Nilo; fosse na Globo, lá estaria Zeca Camargo em um barco, para mostrar a água do Nilo).

Não reflita; não pense; alguém “pensa por você”. Não estude. Não leia nada que tenha mais de 140 caracteres. Não leia parágrafos longos. Seja relativista. Diga que “cada um pode ter a sua opinião sobre qualquer coisa”. Sustente que “gosto não se discute”. E que nada é verdadeiro (inclusive a sua frase!). Você pode “provar” que Michel Teló é tão bom quanto Chico Buarque… E, fundamentalmente, afaste-se de livros complicados. Descomplique a vida, o pá! Não queira saber o que Dworkin fala sobre os princípios… Isso pode ser explicado em cinco linhas… Precisa para o quê e para quê, se depois que você se tornar uma autoridade, você é que “fará as leis”? Se você é juiz, despache como quiser; o idiota do advogado que encontre o modo de opor embargos; depois, despache dizendo “nada há a esclarecer”… Ele que entre com um agravo, que, obviamente, será transformado em “retido” (e, às vezes, nem isso!)… Falta um centavo no preparo? Livre-se do recurso! Negue-o! E todos cumprirão a meta do CNJ. Efetividades quantitativas. Eis o mote. Eis a pós-modernidade. Eis a imagem da Justiça. E imagem é tudo.

Retorno. Desde os sofistas que sabemos que palavras e coisas não estão “coladas”. Na palavra “rosa” não está o perfume da flor. A palavra estupro não “carrega” a essência de “estuprez”. Antígona entendeu bem isso. Seu direito não cabia na lei de Creonte! Infelizmente, o Direito (ensino e prática cotidiana), assim como a Televisão, ingressam perigosamente nessa “isomorfização”. A TV Globo tentou ensinar filosofia no Fantástico. E a dublê de repórter-filósofa, para ensinar o Mito da Caverna, teve que entrar… onde? Em uma caverna, é claro. É demais. Imagem é tudo. Depois ela subiu em um caminhão em movimento, para ensinar… o quê? O movimento da tese heraclitiana. Fico pensando como a filósofa mostraria a Navalha de Ockhan… Ela, com uma navalha, fazendo a barba de alguém? Que tal? E como seria a “imagem” (sic) do Cogito? Um ator interpretando Descartes, tomando cerveja em Ulm, na Alemanha? Ou ainda: de que modo seria uma reportagem sobre o bunga-bunga do Berlusconi? Vou estocar comida. E palavras. Podem vir a faltar, no futuro.

Estamos condenados a interpretar. Quando a TV insiste em “colar” palavra e coisas (imagens e palavras das quais a imagem fala), está negando a inexorabilidade da interpretação. E o Direito não é diferente. Não há uma imanência entre palavras e coisas. Sempre estamos procurando fazer pontes para saltar por sobre essa cesura. Nessa intensa procura, há algo que é inacessível e isto parece incontornável (aqui parafraseio Heidegger). Ou algo que é incontornável e que, por isto, inacessível. Conteudística ou procedimentalmente, é essa incerteza que, consciente ou inconscientemente, move-nos em direção a essa longa travessia. E essa travessia somente é possível na e pela linguagem. Afinal, como bem disse Heidegger, “Die Sprache ist das Haus des Seins; in das Haus wohnt der Mann” (a linguagem é a casa do ser; nessa casa mora o homem). Não há um objeto do outro lado do abismo gnosiológico que nos “separa” das “coisas”. E tampouco há um sujeito – assujeitante – capaz de fazê-lo.

Por isso – e permito-me sofisticar um pouco a coluna, até para sairmos desse imaginário pequeno gnosiológico que domina as práticas cotidianas e o ensino jurídico -, Stephan Georg é definitivo, ao bradar: “kein Ding sei, wo das Wort gebricht“. Que nenhuma coisa seja onde fracassa a palavra, ele diz. Onde falta a palavra, nenhuma coisa! A coisa é o que tem a necessidade da palavra para ser o que é. E é Hilde Domin que encerra o butim das palavras: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort“. Palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra…! Mas, acrescento eu, depois se separaram. Daí o trabalho que temos para des-velar esse mistério que existe desde a aurora da civilização. Talvez fazendo uma caminhada antimetafísica: diferenciando (e não cindindo ou dualizando) texto e norma, palavras e coisas, fato e Direito…

Talvez tenhamos recebido o castigo de Sísifo; rolamos a pedra até o limite do logos apofântico e imediatamente fomos jogados de volta à nossa condição de possibilidade: o logos hermenêutico. Eis o castigo ou a glória: a de estarmos condenados a interpretar! Se um texto legal conseguisse abarcar todas as hipóteses de aplicação, seria uma lei perfeita. No fundo, é como se conseguíssemos fazer um mapa que se configurasse perfeitamente com o globo terrestre. Só que já não seria mais um mapa…! E isso seria apenas informação. Não seria um saber. Seria a “própria coisa”. E se o mundo não precisasse de interpretações, seríamos deuses… E isso não teria graça nenhuma.

Encerro, porque já passei de 140 caracteres… Já na biblioteca, atravessadas duas alamedas, marcamos, Vicente, Leonel e eu, novo encontro para discutir as condições de possibilidade para romper com essa denúncia de T.S. Eliot. É um trabalho árduo. Mas não nos assusta. Nasci no meio do mato. Literalmente. Na Várzea do Agudo, lugarejo no interior do interior, onde o mato carece de fecho, como em Grandes Sertões. Parido de parteira. Como a linguagem surge na falta (Lacan), expedito, fui me adiantando… E estocando palavras. E já saí agarrado nelas, catando letrinhas. Desde cedinho. Sim, o mundo está cheio delas: as palavras. Com elas não me assusto. Se antes catava palavras, hoje elas correm atrás de mim, parecido com o que diz o meu poeta preferido Manoel de Barros. Gostava de brincar com elas, as palavras. Meus pais apostavam que, por ficar palavreando o tempo todo, daria-me bem em lides forenses. Sim, palavra é pá-que-lavra, como brinco nas diversas edições do meu Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Do mesmo modo que Constituição é algo que “constitui-a-ação”. Eu “constituo-a-ação”… Gosto de dizer isto. Por isso acredito tanto nela. E fico palavreando com o mundo. Minha profissão, na verdade, sempre foi a mesma de meus pais, que nunca estudaram. Sua ferramenta era a enxada. E a pá. Com ela lavravam a terra. Com o que me sustentaram. A minha ferramenta é também a pá. Sim, a pá-que-lavra. Palavra. Lavra sulcos para plantar sementes nas imaginações. Sementes de sentido. Pequenas colheitas já me bastam. Saciam-me. De saber. E não de informação! Por aqui se diz “churrasco e bom chimarrão”… McDonald’s, não!

[1] Não se automedique lendo (tomando) placebos… Persistindo os sintomas, leia a Constituição. Este medicamento não é recomendado para casos de estultice.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24.05.2012.

Novo Código Penal – Direito Penal do Risco (?)

Comissão de juristas gosta do Direito Penal do Risco

Lenio Luiz Streck

Procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

Li com atenção a entrevista do Ministro Gilson Dipp, Presidente da Comissão que redige o projeto do novo Código Penal. Trata-se de um trabalho de fôlego, pelo qual sua Excelência merece os cumprimentos. Devemos ter por alvissareira a intenção da comissão de operar uma “consolidação das leis penais” em torno de um núcleo representado pelo código penal. Nessa linha, as preocupações com um tratamento mais rigoroso com relação aos chamados “crimes do colarinho branco” e, ao mesmo tempo, uma preocupação em equalizar as desproporções hoje existentes em nossa lei penal (principalmente no que tange a penas impostas para proteção de bens jurídicos diversos, como o patrimônio e a integridade física em que, por vezes, como venho denunciando de há muito, o primeiro acaba privilegiado em detrimento do segundo). Não é uma tarefa fácil. Como não tive acesso ao projeto stricto sensu – na verdade, acho que só sai no dia 25 – limito-me a comentar a bela entrevista do Ministro, buscando colaborar com o trabalho da nobre Comissão. Faço-o a partir de um olhar crítico. E, fundamentalmente, histórico.

Com efeito. Quando se faz um novo Código Penal, devemos, antes de perguntar sobre o objeto da penalização, o seguinte: para que serve o direito penal? E, fundamentalmente, olhar no espelho retrovisor. Entender que devemos aprender com a história. Talvez devêssemos fazer um teste inicial: como o novo CP tratará da equação/relação “crimes transindividuais versus crimes interindividuais cometidos sem violência ou grave ameaça”? Para ser mais claro, pergunto de outro jeito: o novo CP tratará do mesmo modo ladrões de galinha e sonegadores de tributo ou contrabandistas ou haverá tratamento privilegiado (como tem sido até hoje)? Comparemos: o grande “filósofo contemporâneo” Marcos Valério recebe um mandado de prisão. Sentença transitada em julgado. Mas, ao invés de cumprir a pena, ingressou com habeas corpus, alegando que o crime de sonegação admite o pagamento até mesmo depois da sentença (na verdade, uma generosa interpretação do art. 9 da Lei 10.684, que diz que o pagamento do tributo sonegado antes do recebimento da denúncia extingue a punibilidade). Ele “ganhou” o HC. Enquanto isso, milhares de ladrões de galinha (ou receptadores de DVDs de blockbusters), mesmo “devolvendo” (ressarcindo o prejuízo), não têm direito a esta benesse legislativa/jurisprudencial. Interessante como a comunidade jurídica “dorme tranquila” com isso… Se o novo CP não responder de forma equânime (com fairness), para que começar a discussão? Isso é simbólico. É o start da discussão. Sei que o Min. Dipp está preocupado com isso. Mas não sei como isso será albergado pelo novo CP. Fui o primeiro no Brasil, lá no inicio da década de 90, a propor a equanimidade entre os crimes fiscais e aqueles contra o patrimônio (cometidos sem violência). Ou seja, não sou contra que M.Valério receba o HC; só quero que os demais nativos de terrae brasilis recebam tratamento equânime.

Não posso deixar de registrar o óbvio, embora o óbvio esteja no anonimato. O que é óbvio? A circunstância de que, no Brasil, historicamente, o direito – especialmente o penal – foi feito para proteger as camadas dominantes. Não é difícil de constatar isso. Tanto por uma análise weberiana (por exemplo, por Raymundo Faoro, em Os Donos do poder), como por outros autores que seguem a vertente marxiana. Faoro chega a dizer que o Brasil é pré-moderno, porque ainda possui estamentos, problemática que ele examina na última parte do seu grande livro. O patrimonialismo está visível na legislação. No Brasil, o direito privado (o civil, principalmente) é feito para os que têm. O domínio (legal) sobre a terra só chega com a Lei de Terras, de 1850, e, basicamente, foi exigência dos traficantes de escravos (a lavagem de dinheiro é coisa nossa, não?). Mas ela tinha bons elementos. “Casava” posse e propriedade. Daí a noção de terras devolutas. Somente em 1916 fizemos um código civil, que, entretanto, “descasou” posse e propriedade. E a terra se transformou em mercadoria. O resultado todos sabemos: a desigualdade no acesso à terra. Ou seja, desigualdade leva à desigualdade…! O remédio? Historicamente, o remédio contra as desigualdades foi… o uso do direito penal. Sabem por que precisamos de cotas nas universidades e no serviço público? Porque o Estado, ao invés de fazer políticas publicas em favor dos ex-escravos, “deu-lhes” um Código Penal, já em 1890. Rápido. E econômico…

Ou seja, é por isso que posso dizer que o direito penal é feito – ainda hoje – para os que não têm (e o direito civil para o que têm). Qualquer dado estatístico mostra isso. Se eu fosse resumir a desigualdade de acesso à justiça em terrae brasilis, usaria uma frase de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos“. Não é exagero. Basta ver a clientela de nossos presídios, que hoje já ultrapassa o meio milhão de encarcerados. E isso não é brincadeira, não.

Por isso um pouco de história vai bem. O Código Penal do Império, feito para substituir o Livro V das Ordenações Filipinas, tinha seus artigos (tipos) apontando para pegar os escravos e excluídos. Sua clientela era a extrema pobreza e escravos. O Código Penal de 1890 (já na República), por sua vez, foi feito para pegar os ex-escravos. Na década de 40 do século XX, quando o Brasil já passava pela segunda etapa de substituição de importações, veio um novo Código, para pegar uma nova clientela. E assim por diante. Nos anos 70, o crime organizado originou novas leis. E, de lá para cá, em termos de políticas criminais e penalizações, o Estado vem “oferecendo” políticas legislativas ad hoc. Política de omissão no atacado e indignação no varejo. Se há exclusão? Ora: no Brasil, ainda hoje furtar um botijão de gás entre duas pessoas dá pena semelhante a lavar dinheiro ou fazer corrupção. Isso para dizer o mínimo.

Espero que a Comissão que elabora o novo Código Penal se dê conta de tudo isso. Que olhem o retrovisor da história. Também espero que a Comissão – e seu Presidente, Ministro Gilson Dipp – se dêem conta do problema fulcral que atravessa a problemática do direito criminal em terrae brasilis. O Min. Dipp disse que não quer teorizar. E que a Comissão é pragmática. Tudo bem. Mas sem teoria a coisa não vai. O direito é alográfico, como já dizia Eros Grau. Ele não dispensa uma teoria para explicar a fenomenologia a ele inerente. O que quero dizer é que, para fazer um novo Código Penal, é preciso compreender a dimensão da crise paradigmática que atravessa o direito criminal. Isto é, por que não conseguimos pegar os lavadores de dinheiro? Por que é que, de 1998 para cá, não condenamos nem 20 pessoas por lavagem de dinheiro? E por que neste período condenamos mais de 100.000 ladrões e estelionatários? A teoria do direito nos dá a resposta! Ou seja, preparados para lidar com conflitos interindividuais, os juristas não estam preparados para lidar com os crimes de natureza transindividual.

Aliado a isso, há o problema da formação da sociedade. Ninguém faz lei contra si mesmo. Não temos, por assim dizer, amigos ladrões de galinha; as classes médio-superiores, que dominam as relações de poder, têm suas amizades e relações noutro campo. Ninguém vai a uma festa onde estejam ladrões pés-de-chinelo. Mas onde tem sonegadores, lavadores de dinheiro, etc, sendo a festa em uma cobertura, tudo fica ok. Basta ver as festas em Paris, envolvendo empresários, autoridades, governadores, etc. A cidadania é “relacional”. E isso tem reflexos na formação das leis. Especialmente nas leis penais.

O próprio comportamento do judiciário está umbilicalmente ligado a esse processo de formação social, portanto, inserido nessa crise paradigmática. Caso contrário, como explicaríamos o quase não-uso da jurisdição constitucional em matéria penal pós-88? Isto é: se esse Código Penal é tão ruim, tão injusto, tão desproporcional, etc., por que continuamos a aplicá-lo “literalmente”? Não poderíamos tê-lo filtrado constitucionalmente? A minha pergunta é retórica. Todos sabemos a resposta. Basta ver a cultura manualesca que se formou ao redor do velho Código Penal e que já está pronta para cercar o “novo”, que vem aí. Nossa formação exegética-formalista responde isso muito bem.

A partir de tais enfoques e do revolvimento do chão linguístico que sustenta a tradição do direito penal no Brasil, permito-me comentar alguns pontos da entrevista do Min. Dipp. Assim:

1. A “ideologia” do novo Código Penal.

Os elementos que podem ser colhidos apontam para um certo discurso conservador. Há uma série de indicações de que a Comissão gosta do “direito penal do risco” e suas técnicas de redução ou neutralização do risco. Como mostrou David Garland (por exemplo, em The Culture of Control, 2001), hoje há uma visualização da perda do controle primário no combate ao crime, razão por que se tem produzido uma política “volátil e contraditória” de controle, que se caracteriza por uma “ambivalência política” e que impede ações coerentes e inteligíveis por parte do Estado em face das limitações que ele tem. Isso pode ser visto, por exemplo, na criminalização/tipificação do enriquecimento ilícito, das milícias, dos jogos de azar (sic), da embriaguez ao volante, para citar apenas alguns indícios. Uma pequena observação: o discurso de que a sociedade é ou foi ouvida não tem comprovação empírica. As audiências públicas são/foram seletivas. Os espaços para discussão minúsculos. As universidades – refiro-me aos centros de excelência que estudam a matéria – não participaram dos debates.

2. A adequação do novo Código Penal à Constituição.

Na verdade, dizer no Brasil que estamos adequando as leis à Constituição virou um mantra. Claro que o Ministro e a Comissão estão certos ao dizer isso. Mas há de se ver se, de fato, isso vai ocorrer. Porque isso não é novo. O discurso das comissões que redigiram os anteprojetos de novo CPP e novo CPC também tinha como premissa básica essa necessidade de “adequação” (como se isso não fosse o óbvio, num ambiente de legalidade constitucional, como diria Elias Diaz). A minha questão é: em que medida podemos avaliar essa adequação? Analisando, simplesmente, as palavras que compõem cada tipo do novo código? Evidente que não! Há uma questão de justificava política mais geral operando-se aqui. Ela também deve apresentar uma adequação ao modelo constitucional estabelecido em 1988.

Vamos a um exemplo retirado da fala do Ministro. Indago: de que modo é possível dizer que um novo código que, modificando as regras de dosimetria da pena, possibilita uma “maior margem de atuação para o juiz”? Segundo o Ministro-Presidente, essa modificação comportará, inclusive, a possibilidade de o “juiz da execução modificar a pena fixada na sentença condenatória”. Qual a justificativa para tal alteração? Resposta dele: o número excessivo de HCs julgados pelos tribunais superiores que questionam o modo como a pena foi aplicada. Mas e as implicações democráticas e hermenêuticas que tal alteração acarretará? Ninguém pensa nisso? Os problemas de quantificação da pena estariam resolvidos abrindo-se as portas para a discricionariedade judicial? A discricionariedade é assim tão compatível com o constitucionalismo contemporâneo? Dizer que se está fazendo um novo Código Penal adequado à Constituição é compatível com uma abertura ao ativismo/decisionismo (subprodutos da discricionariedade)? É possível projetar que teríamos menos HCs impetrados sob esse argumento pelo simples fato de que a margem de atuação do juiz seria maior?

Também causa perplexidade a afirmação de que, ao mesmo tempo que seria alargado o espaço de atuação do magistrado (em um sentido claramente subjetivo), os critérios ficariam mais “objetivos”. A pergunta é: como algo pode ser, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo? Essas perguntas não poderão ser respondidas numa análise meramente casuística, mas são a porta de entrada para argumentos teóricos que poderão, de forma mais rigorosa, avaliar a situação e indicar uma resposta.

3. A importância da teoria do direito.

Penso que algumas questões merecem maior esclarecimento por parte da comissão. Não podemos mais tratar uma codificação e sua confecção como se vivêssemos ainda no século XIX. Quero dizer, não vale de nada defender, hoje, a completude da codificação. É extremamente difícil acreditar, nessa quadra da história, que, por exemplo, “se o Código Penal for mais claro, sem essa colcha de retalhos de várias leis, ele poderá ser aplicado com mais Justiça”. A “clareza” da legislação é um problema novecentista, isto é, de quando ainda se acreditava que o direito poderia ser expresso apenas por conceitos. Sabemos que não é mais assim. Hoje não faltam vozes a defender que as palavras da lei são vagas e ambíguas. Isso nem é mais novidade. Até a dogmática mais pedestre sabe disso, embora, de algum modo, continue sustentando o mesmo sentido objetivo, existente por si mesmo no texto da legislação. Ora, a hermenêutica contemporânea já mostrou que quando interpretamos um texto, mergulhamos num acontecimento que envolve, ao mesmo tempo, nossa autocompreensão e a compreensão do texto. De maneira que nenhum código será “claro o bastante” diante de incautos “operadores do direito” (sic). Do mesmo modo que, me parece evidente, não é possível uma conclusão silogística entre a clareza e a justiça do direito penal.

4. A questão dos crimes de colarinho branco.

Concordo com o Ministro no sentido de que as penas “são muito pequenas”. Mas há que se ter cuidado para não torná-las simbólicas. Também não pode haver a contradição com a frase inicial do Ministro, no sentido de que “aumentar penas não resolve”… A questão que me parece fundamental está dita naquilo que referi no início, sendo a palavra-chave “equanimidade”. O que queremos do direito penal? Se ele tratar de modo privilegiado os crimes do colarinho branco, teremos sérios problemas de adequação à Constituição. Mas, fundamentalmente, há outra questão: não adianta “endurecer” as penas dos crimes do colarinho branco, de um lado, e “amolecer”, de outro, com substituições de penas, cestas básicas, essas coisas que desmoralizam o sistema. Para mim, equanimidade (fairness) quer dizer: sem privilégios para o andar de cima. Só isso já é um bom começo. Porque privilégios para o andar de baixo nunca haverá.

5. Com relação aos crimes de menor potencial ofensivo.

Penso que isso é, sim, matéria para o novo Código. É o novo Código que tem que dizer o que é um crime de menor potencial ofensivo e não uma lei procedimental. É o bem jurídico que deve nortear esse balizamento. Caso contrário, teremos a continuidade da teratologia de hoje, em que a invasão de domicilio armado é considerada crime de MPO. E abuso de autoridade também… E fraude à licitação? Paga cesta básica? Quem regula isso? O Código? Ou é uma questão de procedimento?

6. A secularização do direito. Podemos punir vícios e comportamentos?

Estou curioso para saber como o projeto trata de uma questão muito importante nestes tempos de democracia. Trata-se da secularização. Ou seja, não se pode mais pensar em punir vícios e comportamentos sociais. O primeiro artigo do Código deveria estabelecer que está derrogada a malsinada Lei das Contravenções Penais. Esse tipo de lei é fruto de uma dada sociedade, em que se buscava fazer um controle moral sobre as pessoas. Basta ver o conteúdo dos tipos que compões a LCP. É um behaviorismo criminal. Como bem diz Ferrajoli, no Estado Democrático, o Estado está proibido de punir vícios e comportamentos (ou meros comportamentos). Aliás, faz mais de 20 anos que coloco a minha estranheza acerca dos motivos pelos quais não houve a suscitação da inconstitucionalidade da LCP. O porteiro do Tribunal a declararia contra a ordem democrática. O que dela pudesse restar (disparo de arma de fogo, por exemplo) não é matéria contravencional. Assim, gostaria de saber o que o projeto tem a dizer sobre casa de prostituição, coisa que é praticada em qualquer canto do país. Onde não tem lupanário? Vão continuar proibindo? Para quem? Para os lupanários modorrentos? E as casas de massagem nas grandes cidades? Estas podem? Ora, praticar a secularização é deixar a hipocrisia de lado. Ou se libera a zona (sic) ou se proíbe para todos, e não libera somente para as camadas dominantes… Crime de dano? Esbulho? Isso não é matéria criminal. E assim por diante. Um novo Código deve filtrar esses elementos todos! Espero que o projeto tenha isso muito claro.

7. Com relação ao aborto.

É importante enfrentar essas questões. Só penso que é temerário falar em aborto que depende das condições da mulher (por exemplo, uma cracóloga ou uma mulher que não tenha condições econômicas para criar o filho…). Isso não seria uma espécie de eugenia? Mais: a meu ver, ao reconhecer – corretamente – o direito de abortar feto anencéfalo, o STF o fez sob o argumento de que esse feto não é vida (argumento principal). Entretanto, uma coisa parece tabu na comunidade jurídica. Se feto é vida e a vida é protegida, como é possível que o Código admita – como já vem fazendo há mais de 70 anos – que se “mate” um feto normal, nos casos de estupro? Atenção: estou apenas aqui referindo que a discussão talvez deva ser deslocada do “fator vida do feto” em direção à questão da mulher, como foi o caso Roe v. Wade, nos EUA. Sob pena de redescutirmos o aborto de fetos decorrentes do crime de estupro. Certamente essa questão dará pano para mangas no parlamento brasileiro.

8. Tipificação da eutanásia.

Criminalizar a eutanásia (quando por piedade e a pedido de paciente terminal, capaz, ceifa-lhe a vida) e excluir a ortotanásia (deixar de ministrar medicamentos que mantenham vivo paciente nas mesmas condições, com a diferença de que aqui a morte é inevitável, mas a vida é prolongável), soa-me incoerente. O que norteia é o saber médico ou a vontade do paciente?

9. O problema do tráfico de drogas.

O Código Penal tem a oportunidade de enfrentar essa problemática bem de perto. E terminar com a teratologia decorrente de recente alteração legislativa, pela qual, a despeito de aumentar a pena mínima de 3 para 5 anos, trouxe uma diminuição de até 2/3 para os casos de réu primário com o que a pena fica reduzida a 1 ano e 8 meses. Ou seja: aumenta ou não aumenta? Mais: e essa benesse da primariedade reduzir até 2/3 a pena? Poderia ser utilizada nos casos de furto e roubo? Ou estupro? Espero que o novo Código avance para além dessas questões de ausência de proporcionalidade, isonomia e igualdade de tratamento. Há que se dar um fim às políticas legislativas ad hoc.

10. Com relação à tipificação do terrorismo.

Efetivamente essa é uma questão absolutamente complexa. Não deveria ser, mas no Brasil essa é uma coisa que está ainda muito recente entre nós. Disse o Ministro que elaborou um parágrafo para excluir as atividades do MST. Ocorre que uma lei não pode ser feita pensando que se podem abarcar todas as hipóteses de aplicação. A complexidade social “não cabe na lei”. Essa lei já sai, por assim dizer, “casuística”. Qualquer grupo pode cometer terrorismo, dependendo do que se venha a entender por “terrorismo”. O que não pode haver é uma espécie de “terrorismo consentido” ou “terrorismo com álibi prévio”. Penso que o problema não está no parágrafo “dirigido” ao MST, mas, sim, na tipificação “em si”. É nela que devemos nos focar. De todo modo, pensar em tipificar o terrorismo por causa da Copa e das Olimpíadas e ter na mira o terrorismo internacional não parece um indicativo adequado, pela simples razão de que a pena aqui proposta não passa nem perto das penalizações de países como Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, Alemanha. Portanto, nossa tipificação não os assustará. Pelo contrário. Se for por isso…

11. A tipificação de crimes de perigo abstrato, de mera conduta, etc.

A criação do crime de enriquecimento ilícito, olhando a vôo de pássaro, parece interessante. Entretanto, temo que seja mais um tipo de perigo abstrato ou daqueles tipos penais em que se protege não um bem jurídico, e sim a norma. Já temos muitos tipos assim, como os casos de porte de arma, em que há, na verdade, responsabilidade objetiva. E pouquíssimos juristas têm coragem de denunciar que, nestes casos, ocorre a violação da presunção da inocência e do devido processo legal. Também a lei seca entra nessa discussão (do modo como está, uma pessoa passa Listerine e será pega na blitz; e sabemos como as blitz no Brasil são democráticas…). O novo Código defende bens jurídicos? Pode ser. Mas, pergunto: “segurança viária” é bem jurídico? Nos tipos penais desse jaez, o cidadão não pode se defender, demonstrando, por exemplo, que usa a espingarda para se proteger, no caso do porte ilegal, etc. Não. Basta a tipificação. Nesse sentido, já que o novo CP se pretende adequado à Constituição, poderíamos pensar em discutir essa questão mais amiúde, ou seja, tipos penais abstratos, que geram responsabilidade objetiva, são compatíveis com a Constituição? Penso que esse é o momento para discutirmos isso. Dar um tiro para o alto para espantar cabritos em uma plantação de mandiocas é “disparo de arma de fogo”? Sim? Não? Pois há várias condenações à pena de 2 anos por isto. Eu mesmo atuei em mais de um caso desse tipo. Uma teoria do direito penal-processual consistente poderia resolver essas aporias. O problema é que, posto na lei, tornamo-nos (quase) todos exegéticos. A saída para esses casos seria simples, bastando aplicar a tese da nulidade parcial sem redução de texto, como proponho em meu Verdade e Consenso. O que quero dizer é que, ou consertamos logo essas coisas ou depois não dá mais.

12. A criminalização da homofobia e a perigosa expansão do direito penal.

Isso está dentro de uma onda do “politicamente correto”, numa tentativa de introduzir uma novilíngua (pensemos sempre em Orwel, no seu 1984). Mais uma tentativa de o Estado punir vícios e comportamentos sociais. Isso não é coisa para o direito penal. Temos que cuidar para não nos tornarmos esquizofrênicos. Lembro-me de uma conferencia que fiz com Alessandro Baratta, nos idos dos anos 90. Estávamos em um Congresso que tratava de violência contra a mulher. Todas as mulheres ali presentes eram de esquerda. E todas, no seu cotidiano, defendiam o direito penal mínimo. Mas com relação à violência contra a mulher, todas queriam direito penal máximo. Direito penal não servia para nada (no discurso do cotidiano). Mas, no ponto tratado (violência contra a mulher), ele passava a se tornar condição de possibilidade. Então, Baratta disse: somos esquizofrênicos. Queremos de um lado, minimalismo; de outro, maximalismo. Depende do que nos interessa. Pois é. Criminalizar a homofobia entra nessa esquizofrenia. O mesmo vale para violação de prerrogativas de advogados. Ora, se não conseguirmos fazer com que os magistrados respeitem as prerrogativas dos advogados, será que conseguiremos sob a ameaça da criminalização? E alguém acha que isso daria certo? Alguém acredita na condenação de um juiz por cometimento do crime de desrespeito das prerrogativas de um advogado? No Brasil? Não vamos estroinar com a massa de bacharéis…

13. A questão dos jogos de azar (de novo a expansão).

Essa da tipificação do jogo de azar é um sintoma dos problemas que venho apontando. No fundo está a questão histórica do jogo do bicho e o que “está por trás”. Esse discurso já era problemático há algum tempo. Hoje, quando o jogo de azar (basta ver o tipo penal criado: se você faz uma aposta com seus amigos sobre quem fará o primeiro gol no jogo… comete crime) é todo (ou quase) comandado pelo poder público, com mil loterias… Ora, o problema não é mais penal, e sim econômico. Quer dizer, o Estado pode, pois não? Ao meu sentir, bastaria liberar e criar mecanismos seguros (os bicheiros já propuseram, para ser mais sério o controle que as loterias) de arrecadação. O que acabaria mesmo é esse discurso errôneo de que por trás do bicho está a tráfico. Não é verdade isso. Não há prognose a esse respeito. O tráfico é muito maior que o bicho; só que não tem o “glamour”, etc. Portanto, há que se cuidar para não recair no discurso dos anos 70. No fundo – e aqui se vê também – está o direito penal do risco… De novo.

Por derradeiro – e sempre pensando em agregar valor ao projeto e aos esforços empreendidos pela Egrégia Comissão (que merece todos os cumprimentos) -, insisto no ponto: o projeto terá que responder à questão acerca de qual é o papel do direito penal no Estado Democrático de Direito. O direito penal não trata de “coisas boas”. Isso é evidente. Tampouco é instrumento de transformação da sociedade ou do indivíduo. O direito penal não serve para resolver problemas. Ele é um problema! A concepção de um direito garantidor é uma conquista da humanidade. Mas, em tempos de novos paradigmas, ficamos no entremeio de uma aporia: os penalistas (e não somente eles) são praticamente uníssonos (com exceção dos discursos law and order) em apontar o direito penal como discriminatório, seletivo, estigmatizador e “protetor dos interesses das camadas dominantes”. Aliás, já não há qualquer novidade em dizer isso. Assim, dizer que o direito penal, historicamente, criminaliza a pobreza parece, hoje, uma obviedade… O problema é: o que fazer com ele? Extingui-lo? Redefini-lo? Por que punir os crimes contra a propriedade individual (cometidos sem violência) e não punir com o mesmo rigor os crimes que lesam bens jurídicos supra-individuais? Até agora tem sido assim. Isso continuará? Como o projeto responde a isso?

Talvez tenhamos que enfrentar de frente essa criminalização da pobreza e passar a falar da “pobreza da criminalização” dos setores que, de fato, colocam em xeque os bens jurídicos mais relevantes. E, para tanto, não é preciso pensar em estender as graves penas aos crimes do “andar de cima”. A aplicação da Constituição no plano penal por certo não exige que se use o direito penal como vingança dos setores dominados da sociedade contra a histórica criminalização dos pobres. Parece evidente que não. Mas, com certeza, a Constituição não abre mão do direito penal. Ou seja, a Constituição não extingue o direito penal. Ora, se isso é assim, se estamos de acordo que Hobbes e Freud possam ter parcela de razão, então podemos afirmar que “não é proibido proibir”. Punir é (também) um ato civilizatório. O dilema é: como fazer isso sem que o direito penal se torne autoritário/arbitrário e, ao mesmo tempo, não mais seja um direito penal “de classe”?

Neste curto período de vigência da nova Constituição e nos limites do permitido pelos instrumentos postos à disposição pela jurisdição constitucional, penso que já deveríamos ter feito muito mais. Os juristas não somos legisladores. O grande desafio talvez seja – para utilizar uma frase do psicanalista Alfredo Jerusalinski “como conter o gozo da sociedade sem ser tirânico?”.

É nesse fio da navalha que caminha o jurista/penalista do Estado Democrático de Direito. É verdade que, quando a Constituição determina que um dos objetivos da República é erradicar a pobreza, não significa que isso será alcançado utilizando o direito penal; mas isso também não quer dizer que a pobreza continue a ser criminalizada como se estivéssemos no século XIX ou nos anos 40 do século XX . Certamente alguma coisa mudou com o advento do novo paradigma constitucional. Penso que sim.

Fonte: Consultor Jurídico, 08.05.2012.

Recurso Deserto

Algumas situações se repetem. Mas não deixam de ser vergonhosas.

FALTOU UM CENTAVO!

A 6ª Turma do TST negou provimento, por unanimidade, a recurso da Politec Tecnologia de Informação S.A. pelo qual buscava a reforma de decisão da presidência do TST que havia declarado a deserção de seu agravo de instrumento por insuficiência do depósito recursal no valor de um centavo.

No caso, a 14ª Vara do Trabalho de Brasília, em ação de reconhecimento de vínculo, condenou a empresa a indenizar o trabalhador em R$ 50 mil. Diante disso, a Politec recolheu o valor de R$ 5.691,90 em garantia para interposição do recurso ordinário. Após nova decisão desfavorável, a empresa efetuou outro depósito, desta vez no valor de 11.779,02, como garantia a interposição de recurso de revista.

O presidente do TRT da 10ª Região (DF/TO) negou seguimento ao recurso de revista, o que levou a Politec a interpor agravo de instrumento para o TST, na tentativa de que seu recurso fosse analisado.

A empresa deveria, em observância ao disposto no artigo 899, parágrafo 7º da CLT e da alínea “a” do item II da Instrução Normativa nº 3 do TST, complementar o depósito recursal até alcançar o valor fixado na condenação, ou efetuar o depósito da metade do valor máximo do recurso de revista que visava destrancar, ou seja, R$ 5.889,51.

A Politec optou por depositar a metade do valor do recurso de revista. Porém, ao efetuar o depósito, a empresa o fez na quantia de R$ 5.889,50. Diante disso, a presidência do TST, com fundamento no artigo 557, caput do Código de Processo Civil, negou seguimento ao agravo de instrumento por deserção. A Politec, inconformada, interpôs o agravo agora julgado pela 6ª Turma.

Em suas razões, a empresa sustentou que, diante do princípio da insignificância, o recurso não poderia ter sido considerado deserto. Alegou ainda que não teria sido intimada para suprir o valor não depositado.

A Turma, porém não acolheu os argumentos da empresa. Para os ministros, a Orientação Jurisprudencial nº 140 da SDI-1 do TST considera deserto o recurso quando o recolhimento é efetuado em valor insuficiente ao fixado nas custas e nos depósitos recursais, ainda que a diferença seja, como no caso, de apenas um centavo.

Ag-AIRR nº 131-80.2010.5.10.0014 – com informações do TST.

Fonte: Espaço Vital, 11.05.2012.